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Hyperlinks, distorção e mormaço

exposição individual: h4wnee

exposições

Nesta exposição-interdição na Nós Galeria, segunda individual de H4wnee no espaço, o artista reitera e expande seu vocabulário visual já consistente desde sua primeira mostra, Utopias Piratas (2021), assim como sua verve ácida e satírica, que beira ao absurdo, abordando diversas questões hipercontemporâneas, tais como as relações entre o ser  humano e a tecnologia, o virtual e o real, o conceito de hacking, cibercultura e as dinâmicas entre o local e o global. Este último aspecto, é aprofundado e exacerbado neste conjunto de trabalhos inéditos produzidos entre 2021 e 2022, ora através de afinidades afetivas, homenageando referências que constituem suas noções de pertencimento e identidade, ora citando, remixando e reconfigurando narrativas e imaginários que foram construídos a respeito de um lugar geográfico, político e simbólico: o Nordeste do Brasil.

 

Paraibano nascido na capital litorânea João Pessoa, H4wnee mantém uma forte ligação com o sertão. Quase todo seu núcleo familiar reside na cidade de Cabaceiras, interior do estado, onde viveu parte de sua adolescência. A cidade ficou conhecida por ser a “Roliúde Nordestina”, graças aos mais de 25 filmes rodados por ali – o mais famoso deles sendo “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes, lançado nos anos 2000 e baseado na obra de Ariano Suassuna. Vale mencionar aqui uma outra informação: Campina Grande, cidade maior cuja região imediata engloba o município de Cabaceiras, é considerada um dos principais pólos industriais e de inovação tecnológica do Brasil.

 

Visto que a arte é uma tecnologia, ferramenta de produção de sentido das mais poderosas, não à toa foi justamente nesse contexto que H4wnee, no maior jeito punk do-it-yourself, “se fez ele mesmo” artista. Um punknejo que cresceu gostando de ouvir rock estrangeiro ao mesmo tempo em que escutava as rádios tocarem os maiores sucessos de Calcinha Preta e Aviões do Forró. Mais contemporâneo que isso, impossível.

 

Esta exposição é, portanto, uma afirmação incisiva do seu lugar enquanto artista fora do eixo econômico, cultural e político dominante – a cidade de São Paulo, onde vive há 5 anos –, cujo pensamento, sensibilidade e formas de produzir tecnologia são diretamente atravessados pela sua experiência neste mundo enquanto nordestino, mais precisamente, paraibano. 

 

Gostaria de lançar luz, ainda, sobre outros aspectos biográficos que nos fornecem uma compreensão maior sobre a sua obra. Tendo crescido numa condição de escassez financeira, H4wnee começou a trabalhar desde muito jovem. Ele, que sempre se interessou por computação e robótica, passou boa parte da adolescência frequentando as famosas LAN houses, muito comuns nos anos 2000, época em que tiveram seu auge. Ali, gastava o pouco dinheiro que ganhava jogando RPG, Arcade e, principalmente, fazendo desenhos e colagens digitais no Photoshop. 

 

Podemos dizer que foi através desse software de edição de imagens que H4wnee, artista autodidata, começou a estudar pintura, desenvolvendo alguns dos principais fundamentos da técnica: composição, cor, luz, sombra, linha e forma. Anos depois, já como jovem adulto, começou a transferir da tela do computador para a tela em canvas as colagens que fazia no Photoshop, pintando com quaisquer que fossem os materiais disponíveis, entrelaçando e hibridizando formas de criação. Nesse contraste entre o real/palpável e o virtual/imaterial, sua produção, prolífica e multidisciplinar, abrange uma variação de suportes que vão desde as técnicas tradicionais de pintura, como a tinta acrílica e a óleo, até esculturas, vídeos, NFTs, site-specific, entre outros. 

No conjunto de trabalhos aqui apresentados, vemos um artista inquieto, cuja pulsão criativa se encontra num constante estado de expansão, inscrevendo nesta nova fase um maior interesse pelo tridimensional. Se antes sua pintura já levava alguns componentes de revelo, agora, cada vez mais, ela se manifesta como conceito de pintura expandida, fazendo uso de materiais como o poliuretano, biscuit, pedaços de televisores, além de interferências diversas em molduras, incluindo a inserção de elementos naturais encontramos nas estradas de Cabaceiras, como os crânios e espinhos. 

 

Destaca-se, ainda, a maior quantidade de obras escultóricas presentes nesta mostra em comparação com seu projeto solo anterior. O arame, condutor de eletricidade, perpassa quase todas as esculturas desta exposição. Em tom irônico e ácido, H4wnee recria, com esponjas de lavar-louças e arame, Spot, o cachorro-robô fabricado pela empresa americana Boston Dynamics. Spot aparece também em uma das pinturas, servindo como churrasqueira para o homem com cabeça de Stormtrooper (os soldados da tropa de base do império em Star Wars) – uma típica “tiração de sarro” a la H4wnee. Um cachorro multiuso, pronto para as mil e uma utilidades, adaptado para a exigência dos consumidores.

 

Forma e conteúdo também se complementam quando o artista reverencia a arte popular nordestina. Fã de Manuel Eudócio (1931-2016), ceramista pernambucano nascido no Alto do Moura, em Caruaru, e último discípulo do Mestre Vitalino, H4wnee traz em suas esculturas outro material que gosta de chamar como “barro da metrópole”. O biscuit, massa de modelar associada ao uso banal para o artesanato caseiro, é realocado para o contexto de uma galeria e subvertido ao status de objeto de arte.

 

Neste mesmo ambiente, convivem com a arte e o artesanato popular as menções aos grandes pintores do modernismo brasileiro Tarsila do Amaral e Portinari – numa releitura de “Os Retirantes” –, assim como elementos da cultura pop e de consumo de massa globais. Para o artista, não há juízo de valor entre a cultura popular e erudita, tampouco existem fronteiras entre o local e o global, ou até mesmo entre tempo e espaço. Tudo é um remix de tudo, uma grande teias de relações, hiperlinks gigantes e sem fim. 

 

Além da cerâmica nordestina, outras homenagens também se estendem a ícones da música contemporânea regional, como Cátia de França, cantora e compositora da Paraíba, que é retratada em uma de suas pinturas. Em outra tela, o artista interpreta, à sua maneira, a canção Geórgia, a carniceira, do grupo pernambucano Ave Sangria, um dos expoentes da psicodelia musical nordestina dos anos 1970. 

 

Hiperlinks, distorção e mormaço é, entre muitas coisas, uma ode à cultura, ao conhecimento e à tecnologia produzidos no Nordeste. O mormaço, termo muito utilizado para se referir ao “calor abafado” característico dos dias mais úmidos, nos serve de alusão à região, mas não apenas isso. Sensação térmica, ele se materializa na visão, como quando forçamos a vista para focar na linha do horizonte que, lá longe, se distorce e retorce em nossa retina, mais parecendo um tipo de alucinação, um delírio provocado pelo calor.   

 

A paisagem sertaneja distorcida, entorpecente e delirante de H4wnee é ao mesmo tempo palco e personagem-vivo das narrativas que o artista deseja construir. Subvertendo os imaginários e clichês associados à região – a escassez, a fome, o atraso –, H4wnee ironiza, desconstrói, retorce e reedifica essa visão e nos faz enxergar esse território tal qual ele é: um horizonte infinitamente plural, vivo, pulsante. Um Nordeste que é, ao mesmo tempo, parte do mundo, e um mundo à parte. 

 

Texto: Sofia Lucchesi

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