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O Visível e o Invisível na Paisagem
exposição individual: Alexandre Nóbrega

exposições

Curadoria e texto crítico: Joana D'Arc Lima

O tempo como nunca, marcha apressado para qualquer recanto: o tempo da espera é vagaroso como um caramujo, o tempo da ausência, veloz como uma águia.

(I. Vieira Jr., 2021)

O Visível e o Invisível na Paisagem, coleção que ora está em exibição na Nós Galeria, foi criada por Alexandre Nóbrega durante seu exílio provocado pelo contexto pandêmico, em Vila Velha na Ilha de Itamaracá/PE, nesses tempos difíceis que atravessamos na contemporaneidade. A solidão, o silêncio, a paisagem local, o tempo disperso imposto por um novo cotidiano, (...) o tempo da espera é vagaroso como um caramujo (...), talvez tenha provocado no artista o desejo de pensar sobre paisagem, cuja representação não respeita proporções nem perspectiva (A. Nóbrega, 2021). O Visível e o Invisível na Paisagem diz sobre o tempo: um tempo que se impõe, que provoca alterações no que está vivo, nos seres inanimados e animados, nas coisas do mundo. Um tempo que produz ruinas e inovações. O tempo se impõe com soberania à existência humana. O tempo deixa suas marcas e seus ruídos.

A coleção é inédita, composta de inúmeras composições pictóricas que não se repetem, todas desviadas para o branco e suas diversas nuances que chegam com mais presença ao branco areia, carregadas de camadas e mais camadas de pigmentação, registros cartográficos de paisagens imaginárias. Nessa exposição parte da coleção será exibida pela primeira vez – em torno de trinta paisagens sobre papel em dimensões variadas (50 x 70 cm e 30 X 30 cm) um livro de artista, composto por uma gravura branca sobre o branco, e apresenta fragmentos da impressão de uma fotografia da Guerra de Canudos/BA e suas ruínas materiais que contam de massacre nacional. Da coleção também faz parte três textos de autoria do artista.

Ao me deparar diante desse conjunto de paisagens intituladas pelo artista, O Visível e o Invisível na Paisagem, fui invadida automaticamente pelas imagens do filme Paisagem na Neblina, do cineasta grego Theodoros Angelopoulos, que narra um drama de duas crianças que fogem de casa em busca de encontrar seu pai, por elas desconhecido. As duas personagens, na busca pelo pai, encontram um fotograma de cinema perdido, aparentemente em branco, deslocam-se numa errância, por entre paisagens e situações desconhecidas, carregando um único referente imagético que lateja entre o visível e o invisível, um registro que pouco carrega de elementos, características e imagens visíveis do que ali um dia esteve gravado, mas sua função é de outra ordem: é a de produzir a crença no que ainda poderia vir. Um vestígio de uma presença desconhecida.

A meu ver é sobre essa latência, sobre esse interregno do tempo, sobre o desconhecido, o indecifrável, o que os olhos não alcançam ver que deseja falar o artista. Suas paisagens são dispositivos visuais, assim como o fotograma carregado pelas crianças de Angelopoulos, para desencadear processos da memória, construções do imaginário e possibilidades de olhar outros horizontes possíveis e imaginados, vividos, rememorados e utópicos, porque não.

Mesmo afirmando o seu distanciamento da tradição da paisagem como gênero das artes plásticas “dos antigos exploradores, e suas representações naturalistas, que se funda na tradição que toma a imagem como cópia estreita e servil do real”, Alexandre Nóbrega recoloca esse debate, e, assim se inscreve nessa tradição para reinventá-la e ou ressignificá-la, abrindo igualmente esse debate na narrativa crítica das artes em Pernambuco. O artista produz deslocamentos radicais na maneira de fazer e apresentar a pintura: liberta-se da figuração tradicional, investiga outras formas de representar aspectos do mundo exterior e interior pela linguagem geométrica, pela composição, sobreposição e pela colagem. Assim, em sua poética de representação, esmaecem a figura humana, a paisagem e as representações canônicas da história da arte e da pintura.

Importante pontuar que há uma interpretação recorrente na historiografia das artes em Pernambuco, que o gênero da paisagem seja uma, ou talvez a principal matriz da arte produzida no Estado. Por meio de uma análise e compilação da história da arte local, num estilo próximo à crônica, intitulada Artistas de Pernambuco (1982), de autoria de José Cláudio, o livro narra uma história da arte pernambucana associada à produção pictórica do século XVII, com base na presença holandesa e na cultura material produzida no período, destacando a obra paisagística do artista viajante Frans Post. Daí concluirmos que a pintura e especialmente a pintura de paisagem sejam, de acordo com José Cláudio, as matrizes oficiais da produção artística da região. Essa ideia alimentava o imaginário dos artistas e seus trabalhos, e podemos inferir que, até a década de 1980, essa visão foi pouco questionada, fosse pelos ditos tratados críticos, fosse por ensaios jornalísticos. A figuração (tipos humanos ou paisagem) na pintura e na gravura e as narrativas visuais de temas políticos e sociais na pintura, no desenho e na gravura são fios de uma tradição da história da arte tecida em Pernambuco.

Nesse sentido Alexandre Nóbrega ao retomar essa questão o faz de forma a produzir deslocamentos, fissuras e reacende esse debate da tradição e sua reinvenção, por meio da construção de outras possibilidades de visualidades e de criação. Reacender a chama desse debate em relação à paisagem em tempos de enclausuramento, solidão e exílio – sejam provocados pela crise sanitária, sejam aqueles desencadeados pela crise política e ou por ambos –, me parece urgente em nossos dias, pois quem sabe isso possa nos fazer desejar o reencantamento do mundo: recriar um novo universo.

Como vocês podem ver Alexandre Nóbrega é um compositor visual: trabalha com a composição no bidimensional por meio da aproximação de recortes de papel que carregam camadas pictóricas que se juntam, se comunicam e abrem diálogos incríveis do ponto de vista da construção poética narrativa. Observem que o espaço pictórico é área de composição narrativa construída pelo artista: sobre uma base os fragmentos são justapostos, sobrepostos, adensados e unidos.

Vale lembrar que Alexandre Nóbrega faz parte daquela “geração” de artistas que promovem, o que chamou o discurso crítico da época, uma revitalização da pintura, trazida por jovens artistas nos anos 1980 — por certa curtição da superfície que, na segunda metade da década, explode nos objetos, nas esculturas e nas instalações (Amaral, 1991). Essa experimentação com a pintura, a meu ver, especificamente no caso do Alexandre Nóbrega é bastante perceptível nos procedimentos realizados na criação dessa coleção intitulada, O Visível e o Invisível na Paisagem, não obstante, se olharmos retrospectivamente para sua produção anterior podemos identificar outras composições narrativas que não se valem da colagem, mas exclusivamente dos procedimentos tradicionais da pintura, e, de maneira extremamente inteligente o artista produz composições com extremo rigor formal e misturas de materiais.

Durante o período entre 2000 a 2014 o artista acompanhou o dramaturgo e escritor Ariano Suassuna – também, seu sogro –, em inúmeras missões artísticas culturais pelo território nacional, em decorrência, seu trabalho pictórico esmaeceu pelas circunstâncias das errâncias e dos deslocamentos territoriais, dando lugar para o exercício com a composição fotográfica, assim, acredito que a temática da paisagem carrega também essas memórias visuais vividas e materializadas em fotografia durante esse tempo. Em 2014 realiza uma exposição dessa série de fotografias intitulada, “O Decifrador”.

Alexandre Nóbrega é um artista arqueólogo – escava o tempo e retira dele fragmentos para compor o presente, um gesto político –, é generoso, gigante, obsessivo e compulsivo que trabalha, nesse caso, apenas com matizes do branco sobre papel. Produz fricções, junta, justapõe, sobrepõe e faz composições. Suas paisagens são densas, carregam espessuras de matérias que permitem a criação de volumes e texturas: muito bom até onde a vista alcança. Cada uma das suas paisagens - mapas e cartografias: território que convida à exploração ao modo proposto pela arqueologia -, permitem à espectadora ou ao espectador uma investigação minuciosa como se tivéssemos que escavar esse território levantando camadas por camadas do tempo ali impregnado nos diversos papéis presentes que remetem a outras temporalidades, outras criações e outras histórias e nas muitas tonalidades da cor branca mesma aquela que acessa a passagem do tempo.

Poder conviver com Alexandre Nóbrega nesses últimos tempos e ter tido oportunidade de realizar essa exposição O Visível e o Invisível na Paisagem na Nós Galeria, nesse momento atual, foi um grande presente para nós, para o nosso meio artístico e para a cidade de São Paulo que por vezes acorda como uma paisagem na neblina: um não saber indecifrável que nos pede uma atitude arqueológica. Nesses tempos de intolerâncias, desrespeitos e golpes nunca é demais imaginar outras paisagens possíveis, e por meio da arte podemos imaginar e criar saídas, como professa o escritor Valter Hugo Mãe, Eu não sei se a arte deve nos salvar, mas tenho certeza que pode nos conduzir a algo melhor que há em nós, para que não nos desperdicemos na vida.

 

Joana D'Arc Lima

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