Corpo / Paisagem / Poesia
exposição coletiva: Alice Gelli, Analu Araujo, Beth da Matta, Caca Mousinho,
Cecilia Mori, Gabi Gelli, Isabela Etchenique, Laura Falzoni, Maria Porto
exposições
Curadoria: Beth da Matta
“Há uma região entre as águas onde remo em Recife chamada de “boca do mar”, se um remador passa por perto, mesmo em seu extenso barco de remo, corre o risco de ser engolido pela fúria das ondas que dominam o minúsculo canal entre arrecifes, onde as águas de rio Capibaribe, do Rio Beberibe e do Oceano Atlântico se encontram. Trata-se de uma bela paisagem, mas um pequeno canói – o barco dos remadores aprendizes, remadores como eu – só nos sonhos pode atravessá-la.”
Oriana Duarte – Nós, Errantes – A Boca do Mar
Para esta exposição coletiva, estabeleci correspondências com as artistas a partir da instalação “Mar de dentro”. Este trabalho faz um convite para uma pausa, e no silêncio dela, ouvir o que as conchas espalhadas pela galeria podem nos soprar aos ouvidos. Nos meus, além de águas mornas e verdes do mar do Recife, elas assopram o meu norte. Pertenço e me oriento por ele. Porque, morando nesta cidade da garoa, que aprendi a amar, o horizonte se interrompe continuadamente, e hoje compreendo que ter o mar como norte nos confere um estado de poesia.
As artistas, cada uma ao seu modo, falam de silêncios, memórias, desejos, e pertencimento numa reescrita de si a partir de seus territórios. Seja com pincel, agulha e linha, máquina de costura, folha de ouro, martelo e cinzel, materiais ordinários ou não, as obras aqui apresentadas, conferem um estado de corpo/paisagem/poesia.
Dos meus encontros com a artista Bia Pessoa, paulistana que sucumbiu aos encantos daquele mar recifense, ela fez do seu ritual diário, observar e pintar as águas verdes de lá. Bia é pintora de observação, domina a técnica e as cores como ninguém, rigorosa e detalhista, se apropria da paisagem com tanta intensidade, mesmo numa tela tão pequena, abre uma janela para a imensidão.
Isabela Etchenique se ancora na geografia, topografia, cartografia e hidrografia para compor o seu repertório visual. Elege as técnicas de desenho e de uma pintura quase gráfica com cores compactas e uniformes. Ultimamente, vem levantando bandeiras para fazer emergir, ao menos simbolicamente, os rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, rios de margem, radicalmente modificados pelo homem em nome da urbanização. Entre a permanência e efemeridade, entre a realidade e o devir utópico, suas quimeras (bandeiras) se impõem flamejantes!
Alice Gelli, designer de formação, se interessa bastante pelo processo, pelo ofício diário de atelier. Lembro que enquanto conversávamos por chamada de vídeo, manuseava um tecido com agulha e linha. Não sei se eram costuras, se ela estava desenhando com as linhas, ou com a ausência delas. Parecia explorar as possibilidades daquele material, daquela trama. Cada trabalho, segundo ela, possui a sua própria identidade formal, sistêmica, plástica. Cada um pede um tipo de material, cores, formas. Alice prioriza o tempo e o silêncio das coisas.
Para Gabi Gelli, a melhor maneira de sair da dor é atravessando-a. Faz das suas experiências pessoais o exercício da transformação. Vida e arte conjugam o mesmo verbo e ressignificam cicatrizes. E para isso, busca os materiais pouco convencionais para produzir seus trabalhos. Os papéis costurados, ou melhor, desenhados com máquina de costura, invocam também um mesmo silêncio. Os elementos que flutuam na caixa de acrílico poderiam virar pipas e subir, subir lá no céu. Mas nem só de silencio nos fala. A série “Despinturas”, feita com lenços demaquilantes, curiosamente, resultaram num diário ruidoso de autodesconstrução ou desretrato. Aos poucos, Gabi se desfaz de máscaras para assumir a nudez de um rosto que se refez ao abandonar os critérios de perfeição regidos pelo capitalismo.
Cacá Mousinho e Cecília Mori trabalham com materiais ordinários. Assim como os lenços demaquilantes da artista Gabi Gelli, Catarina recolhe restos, sobras e descartes pelas ruas de São Paulo, a partir dos quais a artista nos convida para rever nosso processo de consumo infinito e narcísico. Para Byung-Chul Han, “Hoje não consumimos meramente as coisas, mas também as emoções com as quais são carregadas. Coisas não se podem consumir infinitamente, emoções, contudo, sim. Inauguram todo um novo campo de consumo infinito. A emocionalização e a estetização, que a acompanha, da mercadoria são regidas pela coação de produção. Tem que potencializar o consumo e a produção. Com isso, o estético fica colonizado pelo econômico.”
A escultura “Pedaço de chão ”, que serpenteia o espaço expositivo, foi elaborada com tacos de madeira descartados nas caçambas da cidade e de casas demolidas. Provavelmente foram substituídos por brilhantes materiais estetizados. Essa escultura carrega não só a materialidade, mas também o tempo e a memória de cada casa/território. Outros materiais, como cascas de parede, ganham, na versão de Mousinho, a delicadeza quase singela desse mesmo tempo/memória. Já a obra “Vendo horizonte”, traduz as atrocidades que o concreto produz num crescente e infinito amontoado de cimento. Cecília Mori, habituada que é ao horizonte de Brasília, inverte esse sentido na obra “Aterramento”, que surgiu de uma breve residência artística além-mar de Cecília. Ela nos traz duas caixas de acrílico, uma contendo terra vermelha de Brasília, sua cidade natal, e outra com terra preta, de Lisboa, Portugal. As caixas estão expostas lado a lado, mas não seria a paisagem a sua evocação. Curiosamente as caixas estão no sentido vertical, como quem deseja tocar os subsolos da memória, escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 1985, p 225), buscar uma contra narrativa em oposição à história oficial do “progresso”. A terra vermelha e preta nos convidam observar e pensar sobre o modelo de devoração/extrativismo colonial ao qual estamos conectados historicamente. E curiosamente tanto Cacá, que desenha e pinta natureza morta – a partir de objetos e coisas abandonadas – quanto Cecília, que nomeia “Bestas” seus desenhos em papel, nos convidam para uma pausa sobre perceber o ordinário, sobre as coisas que nos sopram e não ouvimos.
Maria Porto pensa a cartografia como uma forma de construção de paisagens psicossociais. Fotografias de família se prestam para enunciar o processo de resgatar o passado e projetá-lo no presente, com novos valores e sentidos. Com uma cartografia fortemente conectada a afetividade, os acontecimentos familiares ganham cores e formas delimitadas, ocultando, por vezes, significados mais profundos. A ausência do rosto dos personagens reforça essa ideia de temporalidade específica, quando memória e sujeito borram as fronteiras da dúvida, do afeto. Essas cenas crescem em tamanho e significados, ganham manchas vibrantes e coloridas, traduzindo, em si, nostalgia e acontecimento do presente. Em cores vibrantes também, Analu Araujo quer entender e buscar as origens de suas memórias, e nesse embate com a tela, emerge uma explosão de gozo. Ana se deixa conduzir pela suspeita, pela espreita do inconsciente, sem pudor, nesse jogo de sedução. Cores, formas quase orgânicas surgem dos gestos vigorosos de liberdade e autonomia. Mas, curiosamente, “Sono de ondas lentas” também nos revela um certo repouso de gestos, um descanso na superfície.
Laura Falzoni permanece observando as nuvens no céu, mas, como num processo de ressignificação, encontra outras maneiras de reescrever a sua história de vida atravessada por perdas. As nuvens que antes se fragmentavam, agora estão costuradas e sobrepostas por camadas de tecidos fluidos e folhas de ouro que irrompem pelo espaço. Em sua poética, Laura se alimenta do mesmo céu que acalentava suas tardes deitada na grama quando criança.
Para finalizar, gostaria de evocar um diálogo: estava com meu filho caçula no colo passeando na praia, ele muito pequenino, e naquele dia a noite estava especialmente iluminada e linda. De repente ele olhou apontando para o céu e perguntou:
- Mãe, o que é aquilo?
- É a lua, meu filho.
-Ela é minha!
- Ahhhhhh, Luquinhas, sim, ela é sua! Mas precisa dividir com um monte de gente sensível como você.
Assim é. Seguiremos desejando, mesmo que em sonhos, atravessar a “boca do mar”; nos presentearmos com a lua; pertencer. Nos modificarmos diante das mesmas coisas e das mesmas paisagens.
Oxalá!
Texto: Beth da Matta