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Sob o Céu dos Meus Dias
exposição individual: Laura Falzoni

exposições

Texto crítico: Bianca Dias

Curadoria: Beth da Matta

Recortar o mundo e inventar um céu: fragmentos de outra cena

 

 

Um céu

um céu porque já não existe a terra,

 sem uma asa, sem penugem, sem uma pena de pássaro, sem névoa

estritamente, unicamente céu

um céu porque já não existe a terra.

 

Henri Michaux

 

 

            É a partir da cenografia e do vitrinismo que se dá a criação de mundos de Laura Falzoni. A passagem para a arte deixa entrever a utilização de elementos cênicos e recursos que fazem parte desse léxico, transmutados por uma espécie de vertigem. Como num renascimento, da posse de suas memórias e dores a artista encontra uma nova maneira de escrever a existência. Linguagens visuais diversas e transposições de elementos – fotografias, colagens, sobreposições, recortes, vídeos – são formas de acesso a essa outra cena que irrompe poeticamente, dando notícias de um trabalho profundo de luto, uma elaboração delicada e inventiva de perdas e abismos. Sua obra conjuga as experiências mais subjetivas e privadas, e também uma dimensão comum onde o corpo e a memória são um campo de batalha em que uma existência é abrigada.

 

            O céu – que atravessa sua poética de maneiras diversas – evoca uma dimensão utópica e uma relação que subverte o interior e o exterior, como se os retratos múltiplos de nuvens se presentificassem para lembrar que o eu não possui solidez, mas é, antes de mais nada, dispersão, possibilidade viva e pulsante de olhar para fora e se extraviar. As nuvens passam a ser as muitas identidades possíveis do eu, ativando um corpo que só existe em reminiscência, nos pequenos intervalos entre as repetições. Neste sentido, retratar a si mesmo é construir uma metáfora do corpo, do mundo, da paisagem, um duplo que se desdobra do eu ao outro em transfigurações, metamorfoses, deslocamentos.

Laura Falzoni elabora esse exercício de metamorfose desconstruindo, a cada novo trabalho, a própria identidade, alterando o sentido visual das imagens por meio de recortes das fotografias de origem. As fragmentações se desenvolvem em diversos níveis como uma desconstrução contínua da identidade e do mundo, se valendo também, em muitos momentos, de certa ironia frente a elementos do cotidiano e da sua própria história, estimulando o aparecimento de outra cena com uso de artifícios estéticos – distorção, sobreposição, recorte, colagem. Ao implicar uma relação com o real, a fotografia ganha um elemento de discurso crítico, promovendo uma ampliação poética da imagem através de reagrupamentos narrativos como nas “nuvens sobre sopa campbells” ou  nas “nuvens fatiadas em caixas de acrílico”.

 

            A palavra também é um elemento central para a artista, que desenvolve uma espécie de escrita entre a imagem e a dimensão da letra. O inconsciente é convocado por intermédio de uma série de marcas e impressões que fixam determinados significantes. “A Outra Cena”, para Freud, seria o inconsciente, irrecuperável como lembrança pura, e que, portanto, deve ser sempre reconstruído, à maneira proposta por Laura: como uma arqueóloga de restos, como uma escavadora precisa e inquieta.

 

            Em “Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin indica uma ressonância notável entre a fotografia e a interpretação psicanalítica. A fotografia teria uma potência analítica, sendo capaz de revelar algo oculto à visão. Para Benjamin, “só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional”. A imagem dá testemunho, portanto, de movimentos pulsionais como em “Expedito sobre um livro da minha mãe”, obra em que, a partir de pequenos fragmentos recortados de fotografias, Laura reinventa a imagem religiosa, sobrepondo ao livro sua língua particular, frente aquilo que se historiciza da sua relação com a mãe e com a dimensão religiosa. É um ato poético que refunda o mundo, a exemplo de T. S. Eliot que, no poema “The Waste Land”, lança a pergunta: ousarei eu perturbar o universo?

 

            Laura abre rasgos nos territórios, que se apresentam como imagens absolutas e definitivas. Ela fatia imagens para dilacerar um mapa pré-determinado, construir o próprio mapa, inventar imagens, afirmar uma posição singular.

 

            Recortar, colar, agrupar, fundar um lugar de autoria como um dispositivo de ficcionalização, buscando imagens ainda não disponíveis: é assim que se pode refundar origens, inverter lógicas de funcionamento e recuperar uma dimensão da incerteza, da imaginação e da utopia. O trabalho de recriar uma escrita própria nos livros jurídicos ou nos romances é o que encontramos nas obras “Nuvens sobre processos jurídicos” ou “Nuvens sobre romances”. O céu inventado sobre um território dominado por imbróglios jurídicos ou romances é uma bordadura do vazio, uma maneira de circunscrever algo como uma travessia de estranha densidade poética, produzindo um curioso entrecruzamento da obra, não como um espelho da vida mas, antes, como o seu oposto: a vida como um texto, uma escritura.

 

            Todos os processos de perda e dor que atravessam sua existência tocam em questões jurídicas ou numa estrutura romanesca, e este é o ponto de subversão de seu trabalho: Laura cria um deslocamento na história se apropriando dessa espécie nova de escrita, feminina, guiada pelo enigma e por uma ética encontrada também na escritora Maria Gabriela Llansol que dizia: “Não quero ser autobiográfica. Quero ser grafia”. Trata-se precisamente disto: a grafia de um mundo próprio, que cria giros em todos os signos previamente dados em sua vida

 

            As nuvens fazem parte de uma paisagem trêmula que suas mãos inquietas fazem vicejar do contato entre o mundo e seu corpo, entre imagem e história. Aqui lembramos de Georges  Bataille que, não por acaso, reconhecia às imagens o poder não de consolar mas, ao contrário, de inquietar, de nos “abrir”, fazer “sangrar interiormente”. Uma experiência de abertura ao imprevisível que articula o que aparece inicialmente inarticulável, como em “Mulher sardinha sobre o diploma de meu pai”, obra em que a artista, com uma sagacidade que revira os protocolos, sobrepõe seu próprio corpo ao título do pai, inventando sua história, ou em “Livro dos sonhos”, trabalho com linguagens diversas em que a ideia de instalação reverbera o imaginário feminino de uma noiva, justapondo nas imagens segredos silenciados.

 

            Laura Falzoni disseca o mundo com mãos nervosas, abrigando em cada obra uma inquietude viva, uma dimensão inassimilável da existência guardada na beleza e na estranheza das coisas. Em seus gestos de rearticulação das imagens há um pressentimento sobre o destino e a contingência, uma escrita perpétua como a que Agnès Varda opera no curta “Ulysse”, em que uma fotografia contém um filme que se revela 28 anos mais tarde. A cineasta se debruça sobre as imagens, as praias, as nuvens, a memória das imagens. Varda é arqueóloga de sua própria memória, exumando o filme do seu inconsciente fotográfico.

 

            Laura também recolhe do inconsciente fotográfico sua maneira de reescrever o mundo, recortando-o, sobrepondo uma coisa em outra, criando formas de se adentrar na imagem. Seus estilhaços – pedaços do real da vida – trazem consigo uma opacidade que não pode ser totalmente assimilada: seu trabalho forja bordas para o inominável. Em sua escrita singular, um livro infinito toca a origem e a refunda e, como na poesia de Herberto Helder, nos ensina:

 

            Podemos devorar  a nossa biografia, podemos ser antropófagos, canibais do coração pessoal. Aquilo que se escreva conservará cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o nosso rosto filmado no abismo do mundo.

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